terça-feira, maio 31, 2011

Scientia

Lentamente sobre mim, abrem-se as madeiras, roídas dos bichos, gastas, carcomidas pelo tempo, deslavadas, esfoladas pelos golpes impetuosos do vento e o branco da tinta que a reveste, lasca-se e esvoaça. Ressoa um guincho estridente de ferro velho, oxidado; melodia intermitente que me desperta da letargia. E ouço, sinto o vento no rosto, esboçando um sorriso gasto e adulterado. Cai vidro no chão e o que resta do mesmo não é mais que um conjunto incoerente de estilhaços brilhantes e pontiagudos. O vidro quebrado devolve-me um sorriso estranhamente redondo, aberto, dissonante. Aproximo-me e, num ímpeto desesperado, fecho o punho e desventro-lhe o sorriso. Escancaro as madeiras impulsivamente e num estrondo avassalador, deixo-me banhar pelos raios de um sol pálido e distante. Ao longe, ouço o som da vida, sinto a luz do mundo, ...ao longe, como o eco improvável de uma voz chamando por mim.

terça-feira, maio 10, 2011

Húmus

Silêncio desbotado,
alma transparente.
Música, serenata,
que ninguém entende.

Nos meus olhos brilha
uma densa escuridão.
As paredes oprimem-te,
cheiram a solidão.
Sento-me só,
cravo as unhas no chão.

Alma deslavada,
silêncio indigente,
alimenta-se do vazio
e das sombras da gente.

Não soando a nada,
inunda o ar,
um eco molhado
de terra profanada.

segunda-feira, maio 09, 2011

Transparência

Obrigo-me a ler frases que matam para poder assistir da primeira fila ao horror do meu sofrimento e ao ridículo da minha existência. Rio de mim às gargalhadas. Masoquista? Não, difícil de vencer, assentando os pés na própria teimosia. Nem voltando atrás, nem com os erros, nem com as evidências do presente, aprendo. Refugio-me na minha serena ignorância, na podridão que me envolve e nos contactos fugazes com o mundo cuja presença procuro, sem fim, obstinadamente... Sem sucesso, ou melhor, sem real retorno. Mas o que sou eu? Será a doença que me consome contagiosa? Onde está o mundo? Onde estão vocês? Sussurro, chamo, grito e só me é devolvido o eco da minha própria voz. A solidão acende essas horrendas chamas em mim, mas o sopro da consciência, serena o lume, reduzindo-o a cinzas. Aconchego-me na dor e não vergo perante esse veneno, mas sinto que, mesmo assim, irremediavelmente, é perceptível. Sem antídoto, percorro as vielas da minha consciência e vou tragando, insaciável, algumas gotas da própria bílis.

quarta-feira, abril 06, 2011

bisturi

A esta hora, já deveria estar a dormir e deveria ter deixado coisas para fazer amanhã, mas não! Passei o dia mergulhada no trabalho e enquanto não o terminei, não descansei. O que é raro, sendo eu procrastinadora por excelência. É raro e estranho. Não por ser bizarro, mas por ser próprio do meu estado de espírito: ando a estranhar algo, talvez a ignorar algo, como diz Milan. Talvez não nesse sentido, mas no sentido literal da palavra também: ando a ignorar-me a mim própria... Ando a fugir de mim, prejudicando-me. Anulo-me e destruo-me metaforicamente falando, mas não só. A verdade não me pode abrir os olhos, só depois de abri-los é que a conseguirei ver. Falta-me só um passo...

quarta-feira, março 23, 2011

Cronos

Exalo tempo por todos os poros da minha pele;
Respiro cada minuto convertendo-o em séculos,
Aspiro a derrotá-lo.
Esse inimigo,
Esse traidor sonolento e vagaroso.
Invicto e maquiavélico manipulador.
Transpiro indolência compulsivamente,
Obstino-me impaciente, fremente,
Já intermitente,
Sadicamente,
Vence-me,
E expiro.

segunda-feira, março 14, 2011

Inferno

Hoje, chove. A escola está inundada. Há água em todo o lado: nas poças enormes, há lama, há terra nas salas, há fugas no tecto. A escola está fria, impessoal, desagradável, húmida. Nunca foi acolhedora, mas os passos que temos que dar a céu aberto para ir de uma sala à outra contribuem para essa sensação de mal-estar.
Na escola, já não se ouvem só as vozes dos alunos, mas o ruído incessante dos martelos pneumáticos que me tolhe o pensamento. Estão agora na minha cabeça e furam-me o cérebro. Já não consigo pensar, as ideias misturam-se e enleiam-se. Já nada é claro. Não me consigo concentrar e a minha capacidade de raciocínio começa a falhar.
O pó esvoaça, o entulho cai pesadamente, os vidros quebram-se e um martelo tresmalhado impõe o seu ritmo de pedra entre os escombros de tijolo e cimento.
A ventoinha do termoventilador range à medida que gira num frenesim repetitivo, reiterando a mesma frase metálica ao longo do dia. Estou no inferno...

quinta-feira, março 03, 2011

Metamorfose

A ferida escancarada expõe a carne, outrora sangrenta e purulenta, agora macilenta e putrefacta, de onde escorre um humor pálido e pestilento. Aí pousaram os vermes que a ingerem. A carne apaga-se lentamente, some-se, metamorfoseando-se. Morre e renasce, noutra forma, noutra vida, noutro tempo.

Hoje só permanece a alva caveira, translúcida, quase diáfana. Branca sombra imóvel, como um veleiro paira longe da costa expondo a lisa orla das suas velas.

domingo, fevereiro 20, 2011

Re-volta.

Imagina uma auto-estrada infindável; cair de pára-quedas em sítio nenhum; desaparecer num  redemoinho, entre as águas. Imagina ir para nunca mais voltar.
Só vamos porque sabemos que regressamos, mais cedo ou mais tarde, e o conforto do lar permite-nos desfrutar melhor da jornada.
Mas, quando não há retorno?  Renegamos as tabuletas das encruzilhadas, descrentes.
O deslumbramento que nos guiou afasta-nos ainda mais do escopo primordial e corremos, sabendo que já não há volta, só revolta.

quinta-feira, fevereiro 17, 2011

Lose

Sem ceder às minhas exigências, continuo a avançar de um passo seguro, mas demasiado firme no passado; nego, recuso, ultrapasso e finalmente resigno-me a não ser o que sou, a esquecer-me de mim, a deixar passar os grãos de areia entre os meandros dessa prisão de vidro. E sobem pouco a pouco, apertam-me, pesam-me, oprimem-me... E ofegante, bato os pés no vazio e não volto à tona, sugada, engolida por essa substância delicadamente opaca. Solto uma mão, mas já vou tarde, consumiu-se o tempo, a última partícula cai e eu imóvel, sufoco, aceito, morro no tempo, findo em mim.

quarta-feira, fevereiro 09, 2011

Silêncio

O pêndulo oscila secamente no vazio, um ruído perturbador, incessante que hipnotiza qualquer réstia de pensamento racional e me leva a divagar, a perder-me em mim. Aí não tento aclarar esse devaneio, nem pôr-lhe um freio, nem que seja um nome na face, e não existe, nada me ocorre, só um sopro de cores, um rodopiar de sensações, o triunfo do quase vazio...

Não pensar, seria a chave, o "supremo interdito", benefício alienado.

Há sempre esse pesar em mim, imóvel, estagnante, de atalaia, como as palavras escritas a tinta invisível que antes de viver jazem mortas, desejando transparecer e finalmente ganhar vida, imoladas pelas chamas, mais cedo ou tarde demais.

Equacionar a utopia de não pensar e deixar correr a lívida tinta...