quarta-feira, março 23, 2011

Cronos

Exalo tempo por todos os poros da minha pele;
Respiro cada minuto convertendo-o em séculos,
Aspiro a derrotá-lo.
Esse inimigo,
Esse traidor sonolento e vagaroso.
Invicto e maquiavélico manipulador.
Transpiro indolência compulsivamente,
Obstino-me impaciente, fremente,
Já intermitente,
Sadicamente,
Vence-me,
E expiro.

segunda-feira, março 14, 2011

Inferno

Hoje, chove. A escola está inundada. Há água em todo o lado: nas poças enormes, há lama, há terra nas salas, há fugas no tecto. A escola está fria, impessoal, desagradável, húmida. Nunca foi acolhedora, mas os passos que temos que dar a céu aberto para ir de uma sala à outra contribuem para essa sensação de mal-estar.
Na escola, já não se ouvem só as vozes dos alunos, mas o ruído incessante dos martelos pneumáticos que me tolhe o pensamento. Estão agora na minha cabeça e furam-me o cérebro. Já não consigo pensar, as ideias misturam-se e enleiam-se. Já nada é claro. Não me consigo concentrar e a minha capacidade de raciocínio começa a falhar.
O pó esvoaça, o entulho cai pesadamente, os vidros quebram-se e um martelo tresmalhado impõe o seu ritmo de pedra entre os escombros de tijolo e cimento.
A ventoinha do termoventilador range à medida que gira num frenesim repetitivo, reiterando a mesma frase metálica ao longo do dia. Estou no inferno...

quinta-feira, março 03, 2011

Metamorfose

A ferida escancarada expõe a carne, outrora sangrenta e purulenta, agora macilenta e putrefacta, de onde escorre um humor pálido e pestilento. Aí pousaram os vermes que a ingerem. A carne apaga-se lentamente, some-se, metamorfoseando-se. Morre e renasce, noutra forma, noutra vida, noutro tempo.

Hoje só permanece a alva caveira, translúcida, quase diáfana. Branca sombra imóvel, como um veleiro paira longe da costa expondo a lisa orla das suas velas.